Às voltas com Caixa de Pandora, Castelo de Areia e outras missões de impacto político que miram parlamentares e administradores públicos envolvidos em corrupção e lavagem de dinheiro, a Polícia Federal descobriu dentro de casa um inimigo silencioso, que ameaçava levá-la ao malogro: milhares de inquéritos mal preparados se arrastavam, muitos há mais de quatro anos, sem nenhuma solução à vista.
A descoberta ocorreu em 2009, após uma inspeção rigorosa realizada pela Corregedoria-Geral da corporação que identificou má gestão e ausência de planejamento como causas maiores do encalhe.
Na semana passada, a PF anunciou que o desafio começou a ser vencido. Dados relativos a janeiro indicam que, pela primeira vez em sua história, a PF fechou o balanço com índice de inquéritos concluídos superior ao de inquéritos instaurados – a diferença foi de 24%.
Em dezembro de 2008 eram 169.282 os procedimentos em trâmite. Um ano depois, em dezembro de 2009, esse número caiu para 159.865. No início de fevereiro bateu em 156.719.
A redução do estoque de inquéritos é meta que a PF persegue há mais de dois anos. Quando assumiu o cargo de diretor-geral da PF, em setembro de 2007, o delegado Luiz Fernando Corrêa mandou mapear a produção das delegacias, divisões e superintendências de todo o País. Identificou o tamanho do déficit e as causas de uma rotina precária. Corrêa verificou que a cada dia aumentava desenfreadamente o volume de feitos. E tirou do armário pelo menos 4 mil inquéritos sobre crimes eleitorais congelados havia quase cinco anos.
O diretor-geral encontrou policiais empenhados, mas esgotados, e outros acomodados e sem estímulo. Ele reafirmou a seus pares a importância do inquérito – afinal, o principal instrumento de trabalho da Polícia Judiciária, a quem a Constituição confere poderes para a investigação criminal.
PARCERIA
Foi uma revolução. Algumas repartições estagnadas e mergulhadas em papéis e carimbos retomaram as atividades. Adotaram-se critérios para medir o custo gerencial da hora de trabalho. “A ideia é racionalizar gastos e obter o melhor resultado”, assinala Corrêa que, antes de chegar à PF, exerceu o cargo de secretário nacional de Segurança Pública – nessa função, constatou a falta de gestão em várias regiões. Já na PF firmou parceria com a Fundação Getúlio Vargas. O passo inicial foi montar quadro estatístico confiável e cobrar metas.
A radiografia e a comparação entre inquéritos abertos e relatados apontaram recorde negativo. Uma defasagem de quase 50%, na média. Em 2005 foram encerrados 42.700 inquéritos, mas a PF abriu outros 66.492. Em 2006, concluídos 45.539 casos e instaurados 71.997. Em 2008, sinal vermelho – 62.502 inquéritos finalizados e 94.230 abertos.
A fila chegou a tal ponto que algumas denúncias levavam até um ano para se transformar em inquérito. “Não havia critério, nem controle. O andamento era ditado pela vontade do dirigente ou da pressão dos interessados”, diz Corrêa. “Pelas novas regras em até 30 dias tudo o que chega à PF vira inquérito.”
O fluxo começou a mudar de mão no ano passado – 73.468 inquéritos submetidos à Justiça, 76.882 inaugurados. Em janeiro a PF virou o jogo: abriu 4.782 novos inquéritos, mas concluiu 5.944 – na prática, enxugou em 24% o acervo. Em alguns Estados a performance alcançou patamares mais elevados. O mapa de atividades judiciários da PF mostra que, no Ceará, 66 inquéritos foram abertos e 254 concluídos – uma redução de 374%. Em São Paulo, a PF abriu 1.074 feitos e fechou 1.397 – curva decrescente em 130%.
Para Corrêa “não basta reduzir por reduzir” o volume de inquéritos. Ele quer qualidade para garantir resposta da Justiça. “Não adianta inquérito enfraquecido, com provas vulneráveis, porque o Ministério Público não vai oferecer denúncia e a Justiça manda de volta”, adverte. “A maior robustez na formação de provas já resultou em maior índice de condenações judiciais e decretação de prisões preventivas válidas por prazo mais extenso.”
O índex da PF mostra que, em 2009, das 4,8 mil prisões efetuadas em todo o País, 75% foram decretadas na modalidade preventiva. Em 2008, esse índice foi de 60% . Até 2007 não chegava a 40%.
Corrêa sustenta que a PF deve mergulhar nas operações contra o colarinho branco e fraudes, mas ressalva que a instituição não pode ficar restrita a esse universo. “A Polícia Federal tem obrigações das quais não pode abrir mão, como o combate ao contrabando e ao narcotráfico, além da atribuição sobre crimes eleitorais.”
Ele repudia a versão de que a PF pôs o pé no freio no cerco à corrupção. “Continua sendo prioridade estratégica da PF. Temos desfechado operações contra organizações que assaltam a Previdência, o Fisco, o erário. São os casos da Castelo de Areia, Caixa de Pandora e Boi Barrica.”
Corregedoria alertou para punições
Para superar o fantasma dos inquéritos travados e impor um padrão às suas investigações, a Polícia Federal tomou dois caminhos. Primeiro, deu início a um amplo processo de fiscalização e vistorias em delegacias. E adotou o Tentáculos, programa que reduz substancialmente a massa de procedimentos.
“A Polícia Federal não tem medo de controle externo, nem de fiscalização, mas não pode pagar pelas falhas em toda a cadeia do inquérito criminal”, argumenta o diretor-geral, delegado Luiz Fernando Corrêa. “O objetivo é atacar a demora na conclusão dos inquéritos e melhorar o indicador de condenações.”
“Não há milagres nessa equação, apenas muito trabalho de todos”, diz o chefe da PF, referindo-se à queda de um tabu que desafiava a corporação desde 1984, ano em que foram inaugurados 10.282 inquéritos e apenas 9.514 despachados.
Valdinho Jacinto Caetano, o corregedor-geral da PF, cruzou o País, inspecionou todas as superintendências e, por mais de uma vez, “radicalizou” – na prática, indicou a colegas a possibilidade de enquadramentos disciplinares.
“Em determinados Estados, onde a coisa não fluía bem, fizemos correição”, explica Caetano. “Vimos onde trabalhavam com desídia, instauramos procedimentos dando oportunidade à ampla defesa e o contraditório. Deu resultado pedagógico fantástico. Isso demora um pouco para disseminar.”
“Encontramos alguma resistência de profissionais que tinham uma certa independência”, revela o corregedor. “Mas eles agora entendem que é bom trabalhar dessa forma.”
O Tentáculos é um modelo que simplifica e torna racional o trabalho – um único inquérito é aberto para investigar todos os golpes de uma mesma organização criminosa. Antes, para cada trama, abria-se um procedimento. “Vamos baixar esse estoque em até 50% ao ano”, estima o corregedor.
O objetivo, informa, é chegar ao patamar de 80 mil inquéritos em cinco anos. “A investigação tem uma velocidade própria. Inquérito que tem que demorar 30 dias vai demorar 30 dias.”
A meta de desempenho se estendeu também à perícia, que reduziu estoque de 12 mil para 8 mil laudos pendentes.
“Mudou o fluxo, é inquestionável que houve evolução”, atesta Sandro Avelar, presidente da Associação Nacional dos Delegados da PF. “Tem que cobrar resultados, mas também saber conhecer as dificuldades muitas vezes enfrentadas pelo delegado que está na ponta”, anota Avelar. “Se não cobrar pode chegar ao desinteresse, mas se cobrar de forma excessiva pode gerar situação em que o delegado sob pressão não vai apresentar bons resultados. Tem que achar o meio termo.”
Fonte: O Estado de São Paulo por Fausto Macedo e Vannildo Mendes
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